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«Dai razões da vossa esperança» sobre a esperança cristã
Carta Pastoral do Patriarca de Lisboa
1. A graça e a paz de Deus Pai e de Nosso Senhor Jesus Cristo e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós, caríssimos diocesanos de Lisboa, quando se ergue diante de nós o início do Ano Jubilar dos 2025 anos da Encarnação do Verbo de Deus. Jubileu é, na tradição bíblica, o ano em que se reestabelecem as relações com Deus, com os homens e mulheres nossos irmãos e irmãs e com toda a Criação (cf. Lv 25,8-17). Este ano de graça e de reconciliação é marcado pelo tema e pelo ritmo da esperança, convocado pelo Papa Francisco com a BulaSpes non confundit. É sobre a esperança que desejo meditar convosco, convidando cada vigararia, paróquia, comunidade cristã, família, movimento ou grupo, em suma, convidando todas as realidades pastorais e administrativas do Patriarcado de Lisboa, mas também cada homem e mulher a poder renovar não só o conhecimento, mas principalmente a vivência da esperança cristã. Ao mesmo tempo, esta é um desejo universal que transportamos no nosso coração: «corresponde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o homem»[1], pelo que pode e deve ser veículo para a descoberta e o diálogo com todas as pessoas de boa vontade.
2. «No íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça» (1Pd 3,15). É certo que, muitas vezes, esta passagem bíblica foi entendida como um convite ao aprofundamento sapiencial e racional das ciências sagradas. No entanto, também a devemos entender como um apelo constante a sermos testemunhas, arautos e missionários da esperança trazida por Jesus Cristo. A esperança é o que hoje mais nos poderá ajudar a construir, nas mais diversas e contrastantes circunstâncias, autênticos processos da vida. Mais ainda, é o próprio processo de salvação que pode oferecer ao mundo, pois, como diz São Paulo «foi na esperança que fomos salvos» (Rm 8,24). Assim, o principal capital humanitário que hoje a Igreja pode oferecer é a esperança, pois, quando apresentamos razões de a viver, testemunhamos inevitavelmente a presença de Cristo, vencedor da morte, mas também indicamos como em Cristo se abrem novas possibilidades de reinterpretar e reconstruir cada experiência da existência como caminho e promessa daquela plenitude «que Deus seja tudo em todos» (1Cor 15,28).
3. Escrevo esta primeira carta pastoral à amada Diocese de Lisboa com a consciência de que é uma comunidade que caminha na fé, procurando sempre fazê-lo em fidelidade ao Espírito Santo. Nos anos mais recentes, o Sínodo de Lisboa (2016), a receção deste (2017-2021), a caminhada sinodal da Igreja universal na renovação da comunhão, participação e missão (2021-2024), o percurso de preparação da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023 e a sua realização, nos primeiros dias de agosto daquele ano, foram motivos para um aprofundamento da vida eclesial nesta Diocese. Damos graças a Deus por todas as maravilhas que o Senhor realizou nesta porção do Povo de Deus e pedimos a luz do Divino Espírito Santo para prosseguirmos o caminho de renovação da Igreja de Lisboa. É com este propósito que caminhamos, e o Jubileu 2025 será, certamente, oportunidade para crescermos na correspondência ao sonho de Deus para a nossa Diocese. De forma especial, pretendo que o Jubileu seja ocasião para amadurecermos os desafios de desenvolvimento sinodal da vida das comunidades cristãs do Patriarcado de Lisboa, na senda da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, acolhendo os desafios do documento final.
4. Quer as luzes, quer as sombras que encontramos na nossa realidade atual mostram a oportunidade e a necessidade de aprofundar a vivência da esperança cristã. Esta foi assinalada pelo Papa Francisco, que a escolheu como inspiração para este ano jubilar: «Esta virtude teologal foi vista poeticamente como a "irmãzinha" no meio das outras duas, fé e caridade, mas sem a qual estas duas não progridem, não exprimem o melhor de si. O Povo santo de Deus precisa muito disto!»[2] Já o Papa Bento XVI, no ano de 2007, tinha convidado a Igreja toda a meditar sobre este mesmo tema, quando publicou a Encíclica Spe Salvi. Também, ainda está gravado na memória de todos nós o que se passou no período da pandemia de Covid-19 e como se popularizaram uns cartazes, geralmente desenhados e pintados por crianças, em que se dizia: «Tudo vai ficar bem». Nestes cartazes, em que se via também um arco-íris – o «arco da velha», como os antigos se referiam, recordando a Antiga Aliança estabelecida por Deus com Noé, depois do dilúvio (cf. Gn 9,12-17) –, vemos espelhada a esperança humana, com a certeza de que o bem acabará por vencer e de que, mesmo no meio das piores desgraças e dificuldades, o ser humano é capaz de encontrar sempre uma centelha de esperança. Tudo isto deve ser um convite a olharmos a esperança de uma forma nova, como verdadeira esperançacristã, em que o adjetivo para além de expressão de orientação, é, sobretudo, uma qualidade intrínseca que potencia a natureza do substantivo[3].
5. Proponho esta meditação sobre a esperança num momento particular da história da Humanidade. As guerras na Ucrânia, na Terra Santa e Médio Oriente, na República Centro-Africana e tantas outras formas de conflito, de ódio e de violência por todo o mundo; o drama da solidão e da exclusão, da pobreza e da fome, já não apenas em lugares distantes, mas cada vez mais próximo da porta de casa de cada um de nós; a incerteza e a insegurança em relação ao futuro de tantos jovens e jovens adultos; a precariedade e a falta de condições para uma vivência digna de tantos migrantes que procuram em paragens longe das suas terras uma oportunidade para viver e constituir família; tantas outras situações que desdizem a dignidade infinita do ser humano criado por Deus, redimido por Cristo, santificado pelo Espírito e chamado à comunhão plena com Deus. São realidade que põem à prova a nossa esperança cristã. Por isso, estas meditações que proponho de seguida não pretendem ser um exercício teórico sobre a virtude teologal da esperança, mas um convite, na esteira da Sagrada Escritura, da Tradição da Igreja e do Magistério, a que renovemos em nós a vida cristã e a que sintamos, no interior do coração, o apelo do Senhor a não temermos diante da agitação das ondas e da tempestade (cf. Mc 4,35-41).
A esperança cristã num mundo secularizado
«[Jesus] disse-lhes, naquele dia, ao cair da tarde: "Atravessemos para a outra margem." E, deixando a multidão, levaram-n'O no barco tal como estava. Havia outros barcos com Ele. Surgiu, então, uma grande tempestade de vento, e as ondas arremessavam-se contra o barco, de tal modo que o barco já se estava a encher de água.» (Mc 4,35-37)
6. A nossa sociedade, nos últimos séculos e décadas, secularizou muitos elementos da fé cristã, não só do ponto de vista iconográfico, mas também no que concerne a muitos valores cristãos. Um desses elementos que foi secularizado e neutralizado na sua potência cristã foi a esperança. Na sociedade secularizada do nosso tempo, a esperança cristã foi substituída pelo otimismo. O otimismo que, muitas vezes, bloqueia a capacidade de ver a realidade. E assim, diante da angústia e das tristezas sentidas, o otimismo tornou-se apenas uma «espera» por algo melhor, como sucede quando se vai ao médico e ficamos na «sala de espera» aguardando a nossa vez. Há «salas de espera», mas não há «salas de esperança». A esperança cristã aponta para lá do otimismo, ainda que, do ponto de vista antropológico, de certa forma se possa basear nele. Podemos dizer que o otimismo se encontra do lado das possibilidades humanas e a esperança depende de Deus. Por isso, dizia o Papa Francisco: «O otimismo desengana, a esperança não!»[4] É preciso retomar a esperança como virtude teologal, isto é, virtude que só se entende e só se pode viver na relação íntima com Deus. Nisto difere essencialmente da atitude passiva da espera: esperamos sozinhos, mas só temos esperança quando estamos em relação com Deus e com o outro nosso irmão.
7. A Constituição Sinodal de Lisboa sintetiza as luzes e as esperanças no nosso mundo, segundo o olhar de Deus (cf. n.º 7-12). Como fundamento desta síntese, afirma: «a certeza crente de que este mundo, uma vez "criado e conservado pelo amor do Criador", muito embora ferido pelo pecado, foi libertado pela Cruz e Ressurreição de Cristo, constitui o fundamento do compromisso cristão no mundo e é geradora de uma esperança firme que nenhuma adversidade poderá jamais abafar»[5]. A Igreja é chamada a uma ação profética neste mundo. Por isso, ela não se pode desligar do contexto em que se situa para poder viver a missão que Deus lhe confiou, desde o início e até à consumação dos tempos. «Esperar equivale a viver: o homem, de facto, vive enquanto espera e a definição do seu existir está ligada à definição do âmbito da sua esperança»[6]. Não se pode separar o ser humano nem do enquadramento em que vive, nem da esperança que alimenta o seu agir. Por isso, a esperança aponta de forma irremediável para a missão que cada cristão é chamado a ser no mundo: imbuído no Espírito de Cristo, está no mundo para o fecundar com esse mesmo Espírito do Alto.
8. Assim se entende, de forma renovada, o convite do Senhor Jesus a sermos sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-16). Isso nunca é estar de costas voltadas para o mundo e, muito menos, de o proscrever à perdição, mas de o habitar como lugar de missão, em que, habitados nós próprios pela graça de Deus, estamos no mundo como testemunhas da novidade de Jesus Cristo. Com efeito, os cristãos exercem no mundo muitas atividades que, mesmo quem não é cristão, também pode exercer. Mesmo a solidariedade e a filantropia são realizadas, e bem realizadas, por muitos que não se contam entre os batizados. No entanto, é necessário reconhecer que há algo mais que só os cristãos podem oferecer ao mundo. É importante que nunca percamos de vista isso mesmo: somos portadores de Jesus Cristo; no Batismo somos consagrados a Deus e chamados a ser imagem de Cristo, pelas nossas palavras, gestos e atitudes. Por cada um de nós – seja sacerdote, diácono, religioso ou leigo – o Evangelho, a Boa Nova da vida divina, acontece de novo. Importa que tenhamos consciência de que, se nos envergonhamos, se nos fechamos ou se desatendemos a proclamação da Palavra de Deus, estamos a faltar ao compromisso com Deus e com os homens e mulheres nossos irmãos e irmãs. A esperança que temos para oferecer ao mundo é o próprio Jesus Cristo, através da Palavra, dos Sacramentos e da Caridade: assim se participa na vida nova e se anuncia o Evangelho. Cristo é a esperança. Cristo, vivo em nós, é a esperança da Humanidade.
9. Um dos principais inimigos da esperança é a imanentização da realidade sobrenatural da pessoa humana: a redução de ser humano ao valor do que produz[7] criou uma insensibilidade ao que não se vê com os olhos da carne. Mesmo muitas das relações interpessoais transformaram-se em negócios, em que já não se mede a intensidade e beleza da vivência, mas o lucro ou perda delas decorrente. Aos poucos, o ser humano não só foi perdendo a capacidade de saber o que é o Céu, mas sobretudo vai perdendo a capacidade de o saborear. A Ressurreição de Cristo abriu para nós a possibilidade de fazer experiência da vida divina. Sem a Ressurreição, se Ele não vive ressuscitado em nós, a Igreja não passa de uma instituição que cabe apenas nos estudos sociológicos ou um monte de ruínas, que só podem ser avaliadas por um arqueólogo. A vida nova que Jesus oferece é, realmente, um convite a passarmos à outra margem e a considerarmos a vida como uma participação verdadeira no sobrenatural, no Mistério que nos engloba a todos. Há um dinamismo de conversão que tem de acontecer, que brota do reconhecimento e da consciência da graça do Amor invisível de Deus em nós. Um passo essencial neste caminho é o cultivo da virtude da humildade, uma vez que a esperança nos lembra que só pelas nossas forças não somos capazes de corresponder plenamente à vocação de Deus para nós: «Quando Deus Se revela e chama o homem, este não pode responder plenamente ao amor divino pelas suas próprias forças. Deve esperar que Deus lhe dará a capacidade de, por sua vez, O amar e de agir de acordo com os mandamentos da caridade.»[8] Outro passo que resulta da humildade é saber escutar, observar/contemplar e discernir os sinais de Deus, os sinais da Casa Comum, os sinais dos seres humanos, cientes de que Deus também interpela a nossa esperança pelos sinais do ambiente e da humanidade.
Redescoberta das virtudes teologais
«Ele estava na popa a dormir, com a cabeça sobre a almofada. Acordaram-n'O, então, e disseram-Lhe: "Mestre, não Te importa que morramos?"» (Mc4,38)
10. Depois de darmos o passo da conversão, da primeira conversão, o que nasce em nós é a intensificação da relação com o Pai, por Cristo, no Espírito; é a tomada de consciência do primado absoluto de Deus, que organiza a nossa existência a partir e em função d'Ele. Há vários percursos para estabelecer esta relação. Tradicionalmente, há o percurso da razão, isto é, do estudo e do aprofundamento da revelação e da doutrina. Recentemente, tem sido muito sublinhada a via pulchritudinis, isto é, o caminho da beleza[9]. Numa Europa que ainda conserva sinais de uma identidade cristã fulgurante, este caminho é particularmente relevante: a beleza das obras de arte que preenchem tantas igrejas antigas e modernas; a harmonia da música sacra antiga, atualmente já pouco utilizada na liturgia, mas que enche muitas salas de espetáculos; também, a beleza da caridade cristã, que se expressa, por exemplo, no gesto simples de atender e auxiliar um pobre. Recuperar a beleza das mil e uma expressões do catolicismo é caminho para mostrar a beleza própria de Deus, como luz que se refrata em muitíssimas cores. Importa recuperar o olhar contemplativo e ser capaz de ver a vida cristã autêntica, com a certeza de que esta é testemunho do amor de Deus. É a forma mais ajustada de viver hoje a evangelização, como dizia o Papa Paulo VI: «O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres […], ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas.»[10]
11. Por muito tempo, insistiu-se demais na ideia de que a porta de entrada na fé cristã era a conversão moral. Esta unilateralidade foi-se acentuando quando a fé era transmitida nas famílias, em que se aprendia a viver como cristão com o pai, com a mãe e com os avós. A conversão moral era a consequência óbvia desta fé que se recebia com o leite materno. No entanto, na sociedade em que vivemos, já não se pode dar por adquirida a transmissão da fé. Deste modo, é preciso colocar o anúncio do Evangelho em primeiro lugar, se não queremos que a Igreja se torne apenas numa instituição de competências sociais. Neste âmbito é muito pertinente viver um ano jubilar dedicado à esperança. Em primeiro lugar tem de estar a relação com Deus, ou seja, a dimensão teologal da fé, esperança e caridade. Esta é a base da conversão integral, como de forma luminosa ensina o Catecismo da Igreja Católica: «As virtudes teologais fundamentam, animam e caracterizam o agir moral do cristão.»[11] Pôr a nossa esperança em Deus mostra que somos chamados a confiar mais no auxílio da graça divina do que nos nossos esquemas pessoais ou pastorais[12].
12. Pôr em primeiro lugar a relação com Deus implica, também, renovar as estruturas e práticas eclesiais. A conversão sinodal a que o Papa Francisco tem convidado a Igreja também passa por isso. Quando o Concílio Vaticano II reconheceu que todos os cristãos, independentemente do estado, idade ou condição, são chamados à santidade, foi isto mesmo que quis afirmar: dar prioridade à relação com Deus. O reconhecimento desta prioridade orienta a doutrina a respeito da Igreja, interpretada como sacramento do amor de Deus: o que se reflete no corpo eclesial, edificado por cada um dos seus membros, não são as suas qualidades pessoais ou os seus talentos, mas a luz da graça de Deus. Deste modo, levar a sério a vida teologal implica perseverar no caminho da humildade, da escuta, do acolhimento, do discernimento, porque importa que seja Deus a aparecer, seja Deus a falar, seja Deus a realizar a sua obra de amor e de graça.
13. Em Portugal, o acontecimento de Fátima tem especial relevo. A oração que o Anjo ensina aos Pastorinhos coloca no coração das virtudes teologais a adoração. Esta atitude orante é o polo agregador de toda a vida teologal: só na adoração se encontra a disponibilidade para Deus[13]. Esta mensagem celeste foi transmitida num tempo em que o mundo atravessava uma guerra sangrenta, em que a vida humana era facilmente descartada. Com efeito, quando se esquece Deus ou quando se voltam as costas a Deus, é o ser humano que acaba por sofrer, porque a sua dignidade se degrada rapidamente, pois Deus é a fonte da dignidade humana. Sermos arautos da esperança tem de passar por anunciar a dignidade de toda a vida humana, desde a conceção até à morte natural, passando pelos variados estados entre uma e outra. Um Jubileu da Esperança deve ser um convite a mudanças estruturais na nossa sociedade, para que cada pessoa seja reconhecida na sua dignidade e cuidada por aquilo que é: uma pessoa querida e amada.
14. As expectativas humanas podem ser veículo para a esperança teologal, quando se tornam oração. Elas podem ser apresentadas no coração, durante a oração, em diálogo com Deus. Diante do sacrário, podemos falar a Jesus dos nossos dilemas e dos nossos projetos e encontrar num excerto da Palavra de Deus a indicação de que necessitamos. O nosso coração abre-se a um novo horizonte de esperança, a um novo «sim», quando rezamos com verdade e confiança o Pai-Nosso, de forma especial a petição «seja feita a vossa vontade»: a esperança cultiva a abertura radical a uma vida totalmente confiada nas mãos de Deus. E a vontade de Deus é o Amor. Com efeito, a esperança «exprime-se e nutre-se na oração, particularmente na oração do Pai-Nosso, resumo de tudo o que a esperança nos faz desejar»[14].
15. A esperança é uma certeza do futuro que experimentamos no presente. O Jubileu 2025 é uma oportunidade peculiar para fazermos essa experiência. Não deixa de ser curioso notar que, na história sagrada, nos setenta anos que o Povo passou no Exílio, não se celebraram jubileus. Ou seja, quando não se está na Terra Prometida, há um impedimento de celebrar jubileus. Pelo contrário, nós celebramo-los, porque estamos na Terra Prometida, que é a comunhão com o próprio Senhor Jesus. Deste modo, é no presente que se faz a experiência dos frutos jubilares: a graça, a conversão, a vida teologal, a indulgência. Isso acontece porque estamos em Deus; porque estamos enxertados em Cristo pelo Batismo; porque vivemos animados pelo seu Espírito. Realmente, somos já habitantes da Terra da Promessa, concidadãos dos santos (cf. Ef 2,19).
Peregrinos da esperança
«E Ele, levantando-Se, repreendeu severamente o vento e disse ao mar: "Cala-te! Fica quieto." O vento amainou e fez-se grande bonança.»
(Mc 4,39)
16. É verdade que, no nosso tempo, encontramos muitas luzes, mas também muitas trevas que nos fazem duvidar e ter medo. Precisamente por isso, torna-se necessário que no coração de cada cristão se renove a virtude da esperança: «Precisamos muito dela [da esperança] nesta época que parece obscura, na qual às vezes nos sentimos perdidos diante do mal e da violência que nos circundam, perante a dor de tantos nossos irmãos. É necessária a esperança! Sentimo-nos confusos e até um pouco desanimados, porque nos descobrimos impotentes e temos a impressão que esta obscuridade nunca acaba.»[15] Fazemos a experiência concreta de estar no meio da tempestade. Contudo, como os Apóstolos, é precisamente no meio da tempestade que redescobrimos que o Senhor segue connosco na barca. No meio do medo e da aflição, descobrimos que, afinal, nunca estamos realmente sozinhos. O Senhor dá-nos confiança, acompanha-nos com a Sua presença e com o Seu amor.
17. No meio de um mundo tantas vezes carente de paz e de segurança, aumentam constantemente o número de peregrinos e peregrinações, a Fátima, a Santiago de Compostela e a outros santuários. O sentido fundamental da peregrinação encontra-se na esperança. Fazer uma peregrinação é uma metáfora da vida cristã: começamos onde e como estamos e partimos rumo a uma meta, a um destino, a um objetivo. Diz-se muitas vezes nas peregrinações, sobretudo a Santiago de Compostela: «Caminhante, não há caminho. O caminho faz-se andando.»[16] É necessário que nos ponhamos a caminho, pois não basta saber que há Céu e Vida eterna. É preciso que a nossa vida se transforme em função desse objetivo. Somos peregrinos não de uma ideia ou de uma boa intenção, mas somos peregrinos em Cristo – caminho, verdade e vida – ao encontro de Deus. Na celebração anual do Natal, evocamos o mistério do Deus que, não só Se faz próximo do ser humano, mas faz-Se um de nós, «para que, contemplando a Deus visível aos nossos olhos, sejamos arrebatados no amor do que é invisível»[17]. Assim, iniciando o Jubileu 2025 na Noite de Natal, somos convidados a recordar que a esperança, que vivemos enquanto cristãos, Se fez carne: «Quando falamos de esperança, referimo-nos muitas vezes àquilo que não está no poder do homem e que não é visível. Com efeito, o que esperamos vai além das nossas forças e do nosso olhar. Mas o Natal de Cristo, inaugurando a redenção, fala-nos de uma esperança diferente, de uma esperança confiável, visível e compreensível, porque fundada em Deus. Ele entra no mundo e dá-nos a força de caminhar com Ele: Deus, em Jesus, caminha ao nosso lado e dentro de nós, caminhar com Ele rumo à plenitude da vida dá-nos a força de viver o presente de maneira nova, criativa, jubilosa, embora difícil. Então, para o cristão viver a esperança significa ter a certeza de estar a caminho com Cristo rumo ao Pai que nos espera. A esperança nunca está parada, a esperança está sempre a caminho e leva-nos a caminhar. Esta esperança, que o Menino de Belém nos confere, oferece uma meta, um destino bom para o presente, a salvação à Humanidade, a bem-aventurança a quantos confiam em Deus misericordioso.»[18]
18. O Natal é precedido pelo Advento, que é o tempo litúrgico da esperança, por excelência. As figuras bíblicas que acompanham este tempo litúrgico são sinais eloquentes da vida teologal. Em primeiro lugar, no Antigo Testamento, o profeta Isaías: ele experimentou de forma especial a proximidade com Deus e sentiu a purificação necessária para se aproximar da missão confiada por Deus (cf. Is 6,4-8). Em segundo lugar, João Batista, o Precursor: que aponta a urgência de ter o coração preparado para receber o Messias. No anúncio do Batista, a urgência é a conversão, a mudança de vida, a disposição de vida e de coração para acolher Jesus Cristo (cf. Mt 3,7-12). Em terceiro lugar, o símbolo por excelência da esperança cristã, a Virgem Maria, a Mãe e Senhora da Esperança. Em especial, no título da Senhora do Ó cruza-se a expectativa humana – pelo nascimento da criança – com a esperança teologal – a realização das promessas do Antigo Testamento –, em que o Deus próximo é o Deus que se faz bebé, pequeno, frágil e simples (cf. Lc 1,26-38).
19. A Quaresma é iluminada pela esperança da Páscoa. Atravessamos o deserto como Povo de Deus, que deixa para trás a escravidão e sabe-se chamado à vida de comunhão com Deus. No caminho de libertação do Povo de Deus, experimenta-se – sobretudo na experiência do Sinai – que o Deus que chama à liberdade é o próprio Deus que liberta. No entanto, a libertação a que o seu Povo é chamado a experimentar e a viver não é apenas de ordem jurídica ou territorial, mas é também uma libertação que passa pela conversão do coração – com o dom dos Mandamentos – e pela santificação do Povo, especialmente marcada no dom do culto ritual e do apelo à santidade. A esperança que envolve o Povo que faz a peregrinação quaresmal é a santidade de Deus. Este é um tempo em que se intensificam as práticas penitenciais. Estas, porém, não se esgotam em si mesmas, como se fossem uma «cosmética espiritual», mas apontam para a comunhão, para a relação com Deus e com os irmãos, para a entrada na Terra Prometida, que é a vida divina do próprio Jesus Cristo.
20. Reza a liturgia na Solenidade da Ascensão do Senhor: «Ele não abandonou a nossa condição humana, mas, subindo aos céus, como nossa cabeça e primogénito, deu-nos a esperança de irmos um dia ao seu encontro, como membros do seu Corpo, para nos unir à sua glória imortal.»[19] Na Páscoa celebra-se a esperança cristã, porque a morte não é o fim da vida humana. A realidade mais tenebrosa que ensombra a vida deixa de ter domínio sobre Cristo e sobre aqueles que a Ele estão unidos. Por consequência, a Cabeça, que já está na comunhão divina, para aí nos transporta no seu Corpo, que é a Igreja. Esta passagem da morte à vida, do pecado à graça, é o ritmo e o estilo da esperança autenticamente cristã. É preciso redescobrir a Páscoa como tempo de esperança, como afirma com assertividade o Papa Francisco: «Aqui está a Páscoa de Cristo, aqui está a força de Deus: a vitória da vida sobre a morte, o triunfo da luz sobre as trevas, o renascimento da esperança por entre os escombros do fracasso. Foi o Senhor, o Deus do impossível, que, para sempre, rolou a pedra para o lado e começou a abrir os nossos corações, a fim de não acabar a esperança. Por isso devemos também nós elevar os olhos para Ele.»[20]
Reativar lugares de esperança
«Depois disse-lhes: "Porque estais assustados? Ainda não tendes fé?" Sentiram um grande temor e diziam uns aos outros: "Quem é este que até o vento e o mar lhe obedecem?"»
(Mc 4,40-41)
21. A palavra evangélica que nos tem conduzido ao longo desta carta confronta-nos ainda com a forma como Jesus nos encontra na nossa situação concreta. A esperança não é uma ideia abstrata, mas implica sempre a necessidade de encarnar, precisa de ocupar os lugares humanos, de abrir processos de evangelização, de alargar horizontes de santidade. Deste modo, há determinados âmbitos em que, de forma especial, se pode viver e aprofundar a esperança. Quero convidar todos a assumir, de forma nova, os desafios destes lugares de esperança. Quero propor-vos alguns, sem esquecer aqueles que o Papa Francisco indica na Bula Spes non confundit[21], nem aqueloutros que o Papa Bento XVI evocava na EncíclicaSpe Salvi[22].
22. O primeiríssimo lugar em que se concretiza a esperança é na família. Cada nova família é fruto de outras famílias que a precederam e semente de novas famílias que prolongam o sacramento do amor de Deus no mundo. A família constitui-se, assim, numa «Escola de Esperança». A família que é, em primeiro lugar, uma realidade natural, foi santificada e elevada à dignidade sobrenatural pela Encarnação. Celebrar os 2025 anos do nascimento de Jesus Cristo numa família concreta, deve ser um convite a reviver a realidade familiar como lugar de encontro com Deus. Especialmente na sociedade em que vivemos, em que o anonimato e a subjugação aos grandes sistemas sociais, políticos e económicos tantas vezes imperam, é necessário voltar a recordar que a célula básica da sociedade é a família. É, ela própria, a sociedade que surge pela vontade de duas pessoas, homem e mulher, que se entregam mutuamente e se comprometem a realizar um caminho juntos e fecundo de vida e amor, até que a morte os separe. Jesus Cristo está no meio das nossas famílias, quando estas se reúnem em seu nome; quando a oração é o porto de abrigo e de verdadeira revisão da vida familiar; quando se apresentam a Deus as súplicas que traduzem as preocupações de cada membro da família. Importa nunca esquecer que a «família que reza unida permanece unida»[23].
23. Na família e nas comunidades cristãs edifica-se o segundo lugar da esperança que quero sublinhar: a iniciação cristã. A sua porta de entrada é o anúncio cristão, a pregação do Evangelho. Sem anúncio daquilo que é fulcral na fé cristã, ou seja, sem o kerygma, a Igreja torna-se apenas mais uma instituição no meio de outras instituições humanas. Na missão da evangelização encontramos a índole propriamente sobrenatural da Igreja e a razão da sua existência. Desta evangelização nasce a conversão. Esta não se pode reduzir apenas a uma conversão moral, mas àquela conversão que é a experiência da intimidade de Deus, que oferece ao ser humano uma realidade totalmente nova e um novo horizonte: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo»[24]. Aliás, sem o primado da graça – que é Deus em nós – não faz sentido a conversão moral, que se tornaria apenas um moralismo, uma adequação do comportamento a uma norma, desprovida de todo o conteúdo e sentido. Deste modo, a iniciação cristã é sempre um convite a mergulhar na vida divina.
24. Um terceiro lugar de esperança é a realidade pastoral das nossas comunidades cristãs. Estas devem ser porto de abrigo, onde o encontro com Cristo cura, consola, renova e fortalece. É importante que toda a pastoral esteja orientada para este encontro e que toda a missão da Igreja seja dadora de esperança teologal, no tempo que atravessamos. Convoco todas as comunidades cristãs para a missão. Partir em missão é estar, em primeiro lugar, mergulhado no próprio Cristo; partir em missão é fazer nascer Cristo na relação com o outro, a quem nos dirigimos com aquela caridade que preenche o coração dos cristãos. Devemos aproveitar este tempo para nos encontrarmos com os não-crentes, que estão unidos a nós pelas mesmas inquietações, interrogações e esperanças. Todos precisamos de alguém que nos olhe e acolha com esperança. Partir em missão é viver a certeza de que o Espírito Santo nos precede e suscita o acolhimento da Palavra proclamada, dos sacramentos celebrados e da caridade operosa. Elenco três elementos em que isso pode ser especialmente importante, ou, pelo menos, mais notório:
a. A celebração eucarística: é o «Sagrado Banquete em que se recebe Cristo» e, por isso, onde se realiza a íntima comunhão entre o Céu e a Terra. O canto do «Santo» e a Oração Eucarística recordam que, na Missa, não estão presentes apenas os que ali se encontram, mas Aquele que Se torna presente no altar e que une o Céu à Terra. É importante sublinhar este valor transcendente da celebração eucarística, para que seja sempre celebração do mistério de Cristo, que dá a sua vida por nós;
b. O sacramento da Reconciliação: várias vezes o Papa Francisco tem apelado para que se deixe de ver este sacramento como uma ida «à lavandaria», mas que ele seja vivido como um processo médico, em que as feridas são tratadas e as doenças curadas. Por isso, este sacramento, que tem sempre uma dimensão de passado, abre-se à esperança de uma vida mais próxima de Deus e segundo a Sua vontade. Peço que se sublinhe esta abertura a Deus, para que se desenvolva cada vez mais a vida teologal entre os cristãos. Com efeito, «a reconciliação sacramental não é apenas uma estupenda oportunidade espiritual, mas representa um passo decisivo, essencial e indispensável no caminho de fé de cada um. Ali permitimos ao Senhor que destrua os nossos pecados, sare o nosso coração, nos levante e abrace, nos faça conhecer o seu rosto terno e compassivo»[25].
c. As celebrações exequiais: em muitos locais, estas continuam a ser momentos que congregam muitas pessoas. Deve-se evitar que sejam celebrações imanentistas, em que só se atende à realidade material e presente. São momentos de anúncio da esperança cristã, de repropor o âmago do anúncio cristão, de anunciar a Ressurreição do Senhor. Deve-se fazer ressoar o anúncio alegre da vitória de Cristo sobre a morte. O acompanhamento das famílias e dos amigos do defunto é, sempre, uma oportunidade de mostrar a Igreja, próxima e amável, que escuta as preocupações, os sofrimentos e os anseios das pessoas e mostra o caminho da fé cristã como percurso de vida eterna.
25. Um quarto lugar de esperança é a própria vida quotidiana. Há uma expressão temporal da esperança cristã, marcada pelo dom da paciência: mesmo que, no ser humano, a fé tenha um sentido difuso, em determinado momento é levado a reconhecer que necessita de Deus. No entanto, a esperança implica acreditar sempre e confiar o futuro a Deus. Deste modo, a esperança estimula a fé e fá-la crescer. Importa ativar o sentido da esperança nos acontecimentos do dia a dia – seja na saúde ou na doença, nas alegrias e nas tristezas –, de forma que desejemos «o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felicidade, pondo toda a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo»[26]. Isto deve ser uma missão que incumbe a todos os cristãos: da família aos locais de trabalho, da escola à universidade, nos momentos marcantes e nos compromissos mais corriqueiros do dia a dia. Em todos os momentos os cristãos são chamados a testemunhar esta certeza de que não só não estão sozinhos, como sabem que quer o presente, quer o futuro estão nas mãos de Deus.
Conclusão
26. Se a esperança Se fez carne, então, podemos dirigirmo-nos com confiança à Virgem Maria, pedindo que nos dê esperança. Nas suas entranhas concebeu a carne do Filho de Deus e acompanhou-O em toda a sua vida. Quando Jesus disse ao discípulo: «Eis a tua mãe» (Jo 19,27), estava também a dizer-lhe: «Eis a tua mãe da esperança.» Em Maria, o povo crente encontra o refúgio que conduz a Deus e, por isso, pode invocá-la como «Estrela da esperança»[27]. A ela confio este ano jubilar e todos os trabalhos que se vão desenvolver, pedindo à Mãe da Esperança que interceda por todos nós e nos ajude a viver para Deus, a seguir as pegadas de Cristo, a vivermos plenamente como templos do Espírito Santo, como ela própria viveu e nos ensina a todos a viver.
27. Finalmente, trazemos, ainda, no coração as palavras que o Papa Francisco dirigiu à Igreja em Portugal: «Este é o tempo da graça que o Senhor nos concede para nos aventurarmos no mar da evangelização e da missão.»[28] Este ano jubilar é o tempo propício para, verdadeiramente, nos lançarmos em caminho sinodal que nos leva para a missão, dando a razão da nossa esperança, não só de um ponto de vista racional, mas com toda a vida e com todo o empenho. É tempo de recobrar toda a paixão do apostolado, levando todos, todos, todos ao encontro com Cristo. Desejo um santo e feliz ano jubilar, na comunhão e na participação e, como corolário de ambas, na missão. Assim Deus nos ajude e Nossa Senhora por todos interceda.
Deus abençoe todos os diocesanos de Lisboa.
São Vicente de Fora, I Domingo do Advento, 1 de dezembro de 2024
† RUI, Patriarca de Lisboa
[1] Catecismo da Igreja Católica, n.º 1817.
[2] Papa Francisco, Discurso aos participantes na plenária do Dicastério para a Evangelização (setor para as questões fundamentais da evangelização no mundo), 15 de março de 2024.
[3] A virtude da esperança «assume as esperanças que inspiram as atividades dos homens, purifica-as e ordena-as para o Reino dos céus; protege contra o desânimo; sustenta no abatimento; dilata o coração na expectativa da bem-aventurança eterna. O ânimo que a esperança dá preserva do egoísmo e conduz à felicidade da caridade» (Catecismo da Igreja Católica, n.º 1818).
[4] Papa Francisco, Audiência geral, 7 de dezembro de 2016.
[5] Constituição Sinodal de Lisboa, 8 de dezembro de 2016, n.º 4.
[6] C. M. Martini Piccolo manuale della speranza.(2012). Milão: Giunti.16.
[7] Um processo que vem acontecendo sobretudo marcado pelo desenvolvimento rápido da indústria e da técnica.
[8] Catecismo da Igreja Católica, n.º 2090.
[9] «A linguagem da arte é parabólica, dotada de uma especial abertura universal: a "via Pulchritudinis" é uma senda capaz de orientar a mente e o coração para o Eterno, de os elevar até às alturas de Deus» (Bento XVI, Discurso, 25 de outubro de 2012).
[10] Paulo VI, Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, n.º 41.
[11] Catecismo da Igreja Católica, n.º 1813.
[12] De forma contundente chamava a atenção para isso Bento XVI na sua visita a Portugal em 2010: «Muitas vezes, preocupamo-nos afanosamente com as consequências sociais, culturais e políticas da fé, dando por suposto que a fé existe, o que é cada vez menos realista. Colocou-se uma confiança talvez excessiva nas estruturas e nos programas eclesiais, na distribuição de poderes e funções; mas que acontece se o sal se tornar insípido?» (Bento XVI, Homilia, 11 de maio de 2010).
[13] Importa recordar a memória que o Cardeal Joseph Ratzinger transmitia no comentário teológico à terceira parte do segredo de Fátima: «Num colóquio que a Irmã Lúcia teve comigo, ela disse-me que lhe parecia cada vez mais claramente que o objetivo de todas as aparições era fazer crescer sempre mais na fé, na esperança e na caridade; tudo o mais pretendia apenas levar a isso» (Congregação para a Doutrina da Fé, A Mensagem de Fátima, Comentário teológico, 26 de junho de 2000).
[14] Catecismo da Igreja Católica, n.º 1820.
[15] Papa Francisco, Audiência geral, 7 de dezembro de 2016.
[16] Machado, A. Caminante, no hay camino.
[17] Missal Romano, Prefácio I do Natal.
[18] Papa Francisco, Audiência geral, 21 de dezembro de 2016.
[19] Missal Romano, Prefácio da Ascensão I.
[20] Papa Francisco,Homilia, 30 de março de 2024.
[21] Papa Francisco, Bula Spes non confundit, n.ºs 7-15.
[22] Bento XVI, Encíclica Spe Salvi, n.ºs 32-48.
[23] João Paulo II, Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, n.º 41.
[24] Bento XVI, Encíclica Deus caritas est, n.º 1.
[25] Papa Francisco, Bula Spes non confundit, n.º 23.
[26] Catecismo da Igreja Católica, n.º 1817.
[27] Cf. Bento XVI, Spe Salvi, n.º 49.
[28] Papa Francisco, Homilia de Vésperas, 2 de agosto de 2023.
Spes non confundit
BULA DE PROCLAMAÇÃO
DO JUBILEU ORDINÁRIO
DO ANO 2025
FRANCISCO
BISPO DE ROMA
SERVO DOS SERVOS DE DEUS
A QUANTOS LEREM ESTA CARTA
QUE A ESPERANÇA LHES ENCHA O CORAÇÃO
1. «Spes non confundit – a esperança não engana» (Rm 5, 5). Sob o sinal da esperança, o apóstolo Paulo infunde coragem à comunidade cristã de Roma. A esperança é também a mensagem central do próximo Jubileu, que, segundo uma antiga tradição, o Papa proclama de vinte e cinco em vinte e cinco anos. Penso em todos os peregrinos de esperança, que chegarão a Roma para viver o Ano Santo e em quantos, não podendo vir à Cidade dos apóstolos Pedro e Paulo, vão celebrá-lo nas Igrejas particulares. Possa ser, para todos, um momento de encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus, «porta» de salvação (cf. Jo 10, 7.9); com Ele, que a Igreja tem por missão anunciar sempre, em toda a parte e a todos, como sendo a «nossa esperança» (1 Tm 1, 1).
Todos esperam. No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expetativa do bem, apesar de não saber o que trará consigo o amanhã. Porém, esta imprevisibilidade do futuro faz surgir sentimentos por vezes contrapostos: desde a confiança ao medo, da serenidade ao desânimo, da certeza à dúvida. Muitas vezes encontramos pessoas desanimadas que olham, com ceticismo e pessimismo, para o futuro como se nada lhes pudesse proporcionar felicidade. Que o Jubileu seja, para todos, ocasião de reanimar a esperança! A Palavra de Deus ajuda-nos a encontrar as razões para isso. Deixemo-nos guiar pelo que o apóstolo Paulo escreve precisamente aos cristãos de Roma.
Uma Palavra de esperança
2. «Uma vez que fomos justificados pela fé, estamos em paz com Deus por Nosso Senhor Jesus Cristo. Por Ele tivemos acesso, na fé, a esta graça na qual nos encontramos firmemente e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus (…). Ora a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5, 1-2.5). São Paulo oferece-nos aqui vários pontos de reflexão. Sabemos que a Carta aos Romanos assinala uma passagem decisiva na sua atividade evangelizadora. Até então, desenvolveu-a na zona oriental do Império; agora espera-o Roma com tudo o que esta representa aos olhos do mundo: um grande desafio, que há de enfrentar em nome do anúncio do Evangelho, que não conhece barreiras nem fronteiras. A Igreja de Roma não foi fundada por Paulo, mas este sente um vivo desejo de lá chegar logo que possível, para levar a todos o Evangelho de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, como anúncio da esperança que realiza as promessas, introduz na glória e não desilude porque está fundada no amor.
3. Com efeito, a esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do Coração de Jesus trespassado na cruz: «Se de facto, quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com Ele pela morte de seu Filho, com muito mais razão, uma vez reconciliados, havemos de ser salvos pela sua vida» (Rm 5, 10). E a sua vida manifesta-se na nossa vida de fé, que começa com o Batismo, desenvolve-se na docilidade à graça de Deus e é por isso animada pela esperança, sempre renovada e tornada inabalável pela ação do Espírito Santo.
Na verdade, é o Espírito Santo, com a sua presença perene no caminho da Igreja, que irradia nos crentes a luz da esperança: mantém-na acesa como uma tocha que nunca se apaga, para dar apoio e vigor à nossa vida. Com efeito a esperança cristã não engana nem desilude, porque está fundada na certeza de que nada e ninguém poderá jamais separar-nos do amor divino: «Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? (…) Mas em tudo isso saímos mais do que vencedores graças Àquele que nos amou. Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Senhor nosso» ( Rm 8, 35.37-39). Por isso mesmo esta esperança não cede nas dificuldades: funda-se na fé e é alimentada pela caridade, permitindo assim avançar na vida. A propósito escreve Santo Agostinho: «Em qualquer modo de vida, não se pode passar sem estas três propensões da alma: crer, esperar, amar». [1]
4. São Paulo é muito realista. Sabe que a vida é feita de alegrias e sofrimentos, que o amor é posto à prova quando aumentam as dificuldades e a esperança parece desmoronar-se diante do sofrimento. E, no entanto, escreve: «Gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança» (Rm 5, 3-4). Para o Apóstolo, a tribulação e o sofrimento são as condições típicas de todos aqueles que anunciam o Evangelho em contextos de incompreensão e perseguição (cf. 2 Cor 6, 3-10). Mas em tais situações, através da escuridão, vislumbra-se uma luz: descobre-se que a evangelização é sustentada pela força que brota da cruz e da ressurreição de Cristo. Isto faz crescer uma virtude, que é parente próxima da esperança: a paciência. Habituamo-nos a querer tudo e agora, num mundo onde a pressa se tornou uma constante. Já não há tempo para nos encontrarmos e, com frequência, as próprias famílias sentem dificuldade para se reunir e falar calmamente. A paciência foi posta em fuga pela pressa, causando grave dano às pessoas; com efeito sobrevêm a intolerância, o nervosismo e, por vezes, a violência gratuita, gerando insatisfação e isolamento.
Além disso, na era da internet, onde o espaço e o tempo são suplantados pelo «aqui e agora», a paciência deixou de ser de casa. Se ainda fôssemos capazes de admirar a criação, poderíamos compreender como é decisiva a paciência. Esperar a alternância das estações com os seus frutos; observar a vida dos animais e os ciclos do respetivo desenvolvimento; ter os olhos simples de São Francisco, que no seu Cântico das Criaturas, escrito precisamente há 800 anos, sentia a criação como uma grande família, chamando «irmão» ao sol e, à lua, «irmã». [2] Redescobrir a paciência faz bem a nós próprios e aos outros. Frequentemente São Paulo recorre à paciência para sublinhar a importância da perseverança e da confiança naquilo que nos foi prometido por Deus, mas sobretudo testemunha que Deus é paciente connosco: Ele, que é «o Deus da paciência e da consolação» ( Rm 15, 5). A paciência – fruto também ela do Espírito Santo – mantém viva a esperança e consolida-a como virtude e estilo de vida. Por isso, aprendamos a pedir muitas vezes a graça da paciência, que é filha da esperança e, ao mesmo tempo, seu suporte.
Um caminho de esperança
5. Deste entrelaçamento de esperança e paciência, resulta claro que a vida cristã é um caminho, que precisa também de momentos fortes para nutrir e robustecer a esperança, insubstituível companheira que permite vislumbrar a meta: o encontro com o Senhor Jesus. Apraz-me pensar que um percurso de graça, animado pela espiritualidade popular, tenha antecedido a proclamação do primeiro Jubileu em 1300. Com efeito, não podemos esquecer as diversas formas através das quais se derramou com abundância a graça do perdão sobre o santo Povo fiel de Deus. Recordemos, por exemplo, o grande «perdão» que São Celestino V quis conceder a quantos iam à Basílica de Santa Maria de Collemaggio, em Áquila, nos dias 28 e 29 de agosto de 1294, seis anos antes do Papa Bonifácio VIII instituir o Ano Santo. Por isso, a Igreja já tinha a experiência da graça jubilar da misericórdia.E antes ainda, em 1216, o Papa Honório III acolhera a súplica de São Francisco, que pedia a indulgência para quantos tivessem visitado a Porciúncula nos dois primeiros dias de agosto. O mesmo se pode dizer da peregrinação a Santiago de Compostela: de facto, o Papa Calisto II, em 1122, concedeu que se celebrasse o Jubileu naquele Santuário sempre que a festa do apóstolo Tiago calhasse num domingo. É bom que continue esta modalidade «generalizada» de celebrações jubilares, de modo que a força do perdão de Deus sustente e acompanhe o caminho das comunidades e das pessoas.
Não é por acaso que a peregrinação representa um elemento fundamental de todo o evento jubilar. Pôr-se a caminho é típico de quem anda à procura do sentido da vida. A peregrinação a pé favorece muito a redescoberta do valor do silêncio, do esforço, da essencialidade. Também no próximo ano, os peregrinos de esperança não deixarão de percorrer caminhos antigos e modernos para viver intensamente a experiência jubilar. Além disso, na própria cidade de Roma, haverá itinerários de fé que se juntarão aos tradicionais das catacumbas e das Sete Igrejas. Deslocar-se dum país ao outro como se as fronteiras estivessem superadas, passar duma cidade a outra contemplando a criação e as obras de arte, permitirá acumular experiências e culturas diferentes e levar dentro de si, harmonizada pela oração, a beleza que faz agradecer a Deus as maravilhas que Ele realizou.As igrejas jubilares, ao longo dos percursos e em Roma, poderão ser oásis de espiritualidade onde é possível restaurar o caminho da fé e dessedentar-se nas fontes da esperança, a começar pelo sacramento da Reconciliação, ponto de partida insubstituível dum verdadeiro caminho de conversão. Nas Igrejas particulares, deve ser dada uma atenção especial à preparação dos sacerdotes e dos fiéis para as Confissões e para o acesso a este sacramento na sua forma individual.
Aos fiéis das Igrejas Orientais, sobretudo àqueles que já estão em plena comunhão com o Sucessor de Pedro, quero dirigir um convite particular a cumprir esta peregrinação. Eles que tanto sofreram, muitas vezes até à morte, pela sua fidelidade a Cristo e à Igreja, hão de sentir-se particularmente bem-vindos a Roma, que também é Mãe para eles e conserva tantas memórias da sua presença. A Igreja Católica, que está enriquecida pelas suas liturgias muito antigas e pela teologia e espiritualidade dos Padres, monges e teólogos, quer exprimir simbolicamente o acolhimento deles e dos irmãos e irmãs ortodoxos, num tempo em que vivem já a peregrinação da Via-Sacra, sendo muitas vezes obrigados a deixar as suas terras de origem, as suas terras santas, donde a violência e a instabilidade os expulsam rumo a países mais seguros. Para eles, a experiência de ser amados pela Igreja, que não os abandonará mas há de acompanhá-los para onde quer que forem, torna ainda mais forte o sinal do Jubileu.
6. O Ano Santo de 2025 está em continuidade com os anteriores eventos de graça. No último Jubileu ordinário, atravessou-se o limiar dos dois mil anos do nascimento de Jesus Cristo. Em seguida, no dia 13 de março de 2015, proclamei um Jubileu extraordinário com o objetivo de manifestar e permitir encontrar o «Rosto da misericórdia» de Deus, [3] anúncio central do Evangelho para toda a pessoa e em cada época. Agora chegou o momento dum novo Jubileu, em que se abre novamente de par em par a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo. Ao mesmo tempo, este Ano Santo orientará o caminho rumo a outra data fundamental para todos os cristãos: de facto, em 2033, celebrar-se-ão os dois mil anos da Redenção, realizada por meio da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus. Abre-se, assim, diante de nós um percurso marcado por grandes etapas, nas quais a graça de Deus precede e acompanha o povo que caminha zeloso na fé, diligente na caridade e perseverante na esperança (cf. 1 Ts 1, 3).
Sustentado por tão longa tradição e certo de que este Ano Jubilar poderá ser, para toda a Igreja, uma intensa experiência de graça e de esperança, estabeleço que a Porta Santa da Basílica de São Pedro, no Vaticano, seja aberta a 24 de dezembro do corrente ano de 2024, iniciando-se assim o Jubileu Ordinário. No domingo seguinte, 29 de dezembro de 2024, abrirei a Porta Santa da minha catedral de São João de Latrão, que celebrará, no dia 9 de novembro deste ano, 1700 anos da sua dedicação. Posteriormente, no dia 1 de janeiro de 2025, Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, será aberta a Porta Santa da Basílica Papal de Santa Maria Maior. Por fim, no domingo 5 de janeiro de 2025, será aberta a Porta Santa da Basílica Papal de São Paulo Fora dos Muros. Estas últimas três Portas Santas serão fechadas no domingo 28 de dezembro do mesmo ano.
Estabeleço ainda que, no domingo 29 de dezembro de 2024, em todas as catedrais e concatedrais, os Bispos diocesanos celebrem a Santa Missa como abertura solene do Ano Jubilar, segundo o Ritual que será preparado para a ocasião. Quanto à celebração na igreja concatedral, o Bispo poderá ser substituído por um Delegado, propositadamente designado. A peregrinação, desde a igreja escolhida para a concentração até à catedral, seja o sinal do caminho de esperança que, iluminado pela Palavra de Deus, une os crentes. Durante o percurso, leiam-se algumas passagens deste Documento e anuncie-se ao povo a Indulgência Jubilar, que poderá ser obtida segundo as prescrições contidas no mesmo Ritual para a celebração do Jubileu nas Igrejas particulares. Durante o Ano Santo, que terminará nas Igrejas particulares no domingo 28 de dezembro de 2025, zele-se para que o Povo de Deus possa acolher, com plena participação, tanto o anúncio de esperança da graça de Deus, como os sinais que atestam a sua eficácia.
O Jubileu Ordinário terminará com o encerramento da Porta Santa da Basílica Papal de São Pedro, no Vaticano, na solenidade da Epifania do Senhor, dia 6 de janeiro de 2026. Que a luz da esperança cristã chegue a cada pessoa, como mensagem do amor de Deus dirigida a todos. E que a Igreja seja testemunha fiel deste anúncio em todas as partes do mundo.
Sinais de esperança
7. Além de beber a esperança na graça de Deus, somos também chamados a descobri-la nos sinais dos tempos, que o Senhor oferece. Como afirma o Concílio Vaticano II, «é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas». [4] Por isso, para não cair na tentação de nos considerarmos subjugados pelo mal e pela violência, é necessário prestar atenção a tanto bem que existe no mundo. Porém, os sinais dos tempos, que contêm o anélito do coração humano, carecido da presença salvífica de Deus, pedem para ser transformados em sinais de esperança.
8. Que o primeiro sinal de esperança se traduza em paz para o mundo, mais uma vez imerso na tragédia da guerra. Esquecida dos dramas do passado, a humanidade encontra-se de novo submetida a uma difícil prova que vê muitas populações oprimidas pela brutalidade da violência. Faltará ainda a esses povos algo que não tenham já sofrido? Como é possível que o seu desesperado grito de ajuda não impulsione os responsáveis das Nações a querer pôr fim aos demasiados conflitos regionais, cientes das consequências que daí podem derivar a nível mundial? Será excessivo sonhar que as armas se calem e deixem de difundir destruição e morte? O Jubileu recorde que serão «chamados filhos de Deus» todos aqueles que se fazem «obreiros de paz» (Mt 5, 9). A necessidade da paz interpela a todos e impõe a prossecução de projetos concretos. Que não falte o empenho da diplomacia para se construírem, de forma corajosa e criativa, espaços de negociação em vista duma paz duradoura.
9. Olhar para o futuro com esperança equivale a ter também uma visão da vida carregada de entusiasmo para transmitir. Infelizmente, em muitas situações, temos de constatar que falta esta perspetiva. A primeira consequência é a perda do desejo de transmitir a vida. Por causa dos ritmos frenéticos da vida, dos receios face ao futuro, da falta de garantias laborais e de adequada proteção social, de modelos sociais ditados mais pela procura do lucro do que pelo cuidado das relações humanas, assiste-se em vários países a uma preocupante queda da natalidade. Já noutros contextos, «culpar o incremento demográfico em vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar os problemas». [5]
A abertura à vida, com uma maternidade e uma paternidade responsáveis, é o projeto que o Criador inscreveu no coração e no corpo dos homens e das mulheres, uma missão que o Senhor confia aos cônjuges e ao seu amor. Além do empenho legislativo dos Estados, é urgente que não lhes falte o apoio convicto das comunidades crentes e da inteira comunidade civil em todas as suas componentes, porque o desejo dos jovens de gerar novos filhos e filhas, como fruto da fecundidade do seu amor, dá futuro a toda a sociedade e é uma questão de esperança: depende da esperança e gera esperança.
Por isso, a comunidade cristã não pode ficar atrás de ninguém no apoio à necessidade duma aliança social em prol da esperança, que seja inclusiva e não ideológica, e trabalhe por um futuro marcado pelo sorriso de tantos meninos e meninas que, em muitas partes do mundo, venham encher os demasiados berços vazios. Todos, na realidade, sentem a necessidade de recuperar a alegria de viver, porque o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26), não pode contentar-se com sobreviver ou ir vivendo nem conformar-se com o tempo presente, satisfazendo-se com realidades apenas materiais. Isto fecha-nos no individualismo e corrói a esperança, gerando uma tristeza que se aninha no coração, tornando-nos amargos e impacientes.
10. No Ano Jubilar, seremos chamados a ser sinais palpáveis de esperança para muitos irmãos e irmãs que vivem em condições de dificuldade. Penso nos presos que, privados de liberdade, além da dureza da reclusão, experimentam dia a dia o vazio afetivo, as restrições impostas e, em não poucos casos, a falta de respeito. Proponho aos Governos que, no Ano Jubilar, tomem iniciativas que lhes restituam esperança: formas de amnistia ou de perdão da pena, que ajudem as pessoas a recuperar a confiança em si mesmas e na sociedade; percursos de reinserção na comunidade, aos quais corresponda um compromisso concreto de cumprir as leis.
Trata-se de um apelo antigo que, provindo da Palavra de Deus, permanece com todo o seu valor sapiencial ao invocar atos de clemência e libertação que permitam recomeçar: «Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a libertação de todos os que a habitam» ( Lv 25, 10). O que está estabelecido na Lei mosaica é retomado pelo profeta Isaías: «O Senhor (…) enviou-me para levar a boa-nova aos que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a liberdade aos prisioneiros, para proclamar um ano da graça do Senhor» ( Is 61, 1-2). São palavras que Jesus fez suas no início do seu ministério, declarando em Si mesmo o cumprimento do «ano favorável da parte do Senhor» ( Lc 4, 19). Em todos os cantos da terra, os crentes, especialmente os Pastores, façam-se intérpretes destes pedidos, formando uma só voz que peça corajosamente condições dignas para quem está recluso, respeito pelos direitos humanos e sobretudo a abolição da pena de morte, uma medida inadmissível para a fé cristã que aniquila qualquer esperança de perdão e renovação. [6] A fim de oferecer aos presos um sinal concreto de proximidade, eu mesmo desejo abrir uma Porta Santa numa prisão, para que seja para eles um símbolo que os convida a olhar o futuro com esperança e renovado compromisso de vida.
11. Sinais de esperança hão de ser oferecidos aos doentes, que se encontram em casa ou no hospital. Que os seus sofrimentos encontrem alívio na proximidade de pessoas que os visitem e no carinho que recebem! As obras de misericórdia são também obras de esperança, que despertam nos corações sentimentos de gratidão. E que a gratidão chegue a todos os profissionais de saúde que, em condições tantas vezes difíceis, desempenham a sua missão com solícito cuidado pelas pessoas doentes e mais frágeis.
Oxalá não falte a atenção inclusiva por todos aqueles que, encontrando-se em condições de vida particularmente extenuantes, experimentam a sua própria fragilidade, de modo especial se sofrem de patologias ou deficiências que limitam fortemente a autonomia pessoal. O cuidado para com eles é um hino à dignidade humana, um canto de esperança que exige a sincronização de toda a sociedade.
12. E de sinais de esperança também têm necessidade aqueles que, em si mesmos, a representam: os jovens. Muitas vezes, infelizmente, veem desmoronar-se os seus sonhos. Não os podemos dececionar: o futuro funda-se no seu entusiasmo. Como é belo vê-los irradiar energia, por exemplo, quando voluntariamente arregaçam as mangas e se comprometem nas situações de calamidade e mal-estar social! Já é triste ver jovens sem esperança; se bem que se torna inevitável viver o presente na melancolia e no tédio quando o futuro é incerto e impermeável aos sonhos, o estudo não oferece saídas e a falta de emprego ou dum trabalho suficientemente estável corre o risco de suprimir os desejos. A ilusão das drogas, o risco da transgressão e a busca do efémero criam nos jovens, mais do que nos outros, confusão e escondem-lhes a beleza e o sentido da vida, fazendo-os escorregar para abismos escuros e impelindo-os a gestos autodestrutivos. Por isso, que o Jubileu seja, na Igreja, ocasião para um impulso a favor deles: com renovada paixão, cuidemos dos adolescentes, dos estudantes, dos namorados, das gerações jovens! Mantenhamo-nos próximo dos jovens, alegria e esperança da Igreja e do mundo!
13. Não poderão faltar sinais de esperança em relação aos migrantes, que deixam a sua terra à procura duma vida melhor para si próprios e suas famílias. Que as suas expetativas não sejam frustradas por preconceitos e isolamentos! Ao acolhimento, que no respeito pela sua dignidade abre os braços a cada um deles, junte-se a responsabilidade, de modo que a ninguém seja negado o direito de construir um futuro melhor. A tantos exilados, deslocados e refugiados que, por acontecimentos internacionais controversos, são forçados a fugir para evitar guerras, violência e discriminação, sejam garantidos a segurança e o acesso ao trabalho e à instrução, instrumentos necessários para a sua inserção no novo contexto social.
Possa a comunidade cristã estar sempre pronta a defender os direitos dos mais débeis. Generosamente abra de par em par as portas do acolhimento, para que nunca falte a ninguém a esperança duma vida melhor. Ressoe nos corações a Palavra do Senhor que, na grande parábola do juízo final, disse: «Era estrangeiro e acolhestes-me», porque «sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 35.40).
14. Sinais de esperança merecem-nos os idosos, que muitas vezes experimentam a solidão e o sentimento de abandono. Valorizar o tesouro que eles são, a sua experiência de vida, a sabedoria que trazem consigo e o contributo que podem dar, é um empenho da comunidade cristã e da sociedade civil, chamadas a trabalhar em conjunto em prol da aliança entre as gerações.
Dirijo um pensamento particular aos avôs e às avós, que representam a transmissão da fé e da sabedoria de vida às gerações mais jovens. Sejam amparados pela gratidão dos filhos e pelo amor dos netos, que neles encontram as suas raízes, compreensão e estímulo.
15. E sentidamente, invoco a esperança para os milhares de milhões de pobres, a quem muitas vezes falta o necessário para viver. Face à sucessão de renovadas vagas de empobrecimento, corre-se o risco de nos habituarmos e resignarmos. Mas não podemos desviar o olhar de situações tão dramáticas, que se veem já por todo o lado, e não apenas em certas zonas do mundo. Todos os dias encontramos pessoas pobres ou empobrecidas e, por vezes, podem ser nossas vizinhas de casa. Frequentemente, não têm uma habitação nem alimentação suficiente para o dia. Sofrem a exclusão e a indiferença de muitos. É escandaloso que, num mundo dotado de enormes recursos destinados em grande parte para armas, os pobres sejam «a maioria (…), milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e económicos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem frequentemente no último lugar». [7] Não esqueçamos: os pobres são quase sempre vítimas, não os culpados.
Apelos em favor da esperança
16. Fazendo ecoar a palavra antiga dos profetas, o Jubileu lembra que os bens da terra se destinam a todos, e não a poucos privilegiados. É preciso que seja generoso quem possui riquezas, reconhecendo o rosto dos irmãos em necessidade. Penso de modo particular naqueles que carecem de água e alimentação: a fome é uma chaga escandalosa no corpo da nossa humanidade, e convida todos a um rebate de consciência. Renovo o apelo para que, «com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um Fundo global para acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna». [8]
Outro convite premente que desejo fazer, tendo em vista o Ano Jubilar, destina-se às nações mais ricas, para que reconheçam a gravidade de muitas decisões tomadas e estabeleçam o perdão das dívidas dos países que nunca poderão pagá-las. Mais do que magnanimidade, é uma questão de justiça, agravada hoje por uma nova forma de desigualdade de que se vai tomando consciência: «Com efeito, há uma verdadeira "dívida ecológica", particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países». [9] Como ensina a Sagrada Escritura, a terra pertence a Deus e todos nós vivemos nela como «estrangeiros e hóspedes» ( Lv 25, 23). Se queremos verdadeiramente preparar no mundo a senda da paz, empenhemo-nos em remediar as causas remotas das injustiças, reformulemos as dívidas injustas e insolventes, saciemos os famintos.
17. Durante o próximo Jubileu, ocorrerá um aniversário muito significativo para todos os cristãos: completar-se-ão 1700 anos da celebração do primeiro grande Concílio ecuménico, o de Niceia. É bom lembrar que já em diversas ocasiões, desde os tempos apostólicos, os Pastores se reuniram em assembleia com a finalidade de tratar temáticas doutrinais e questões disciplinares. Nos primeiros séculos da fé, multiplicaram-se os Sínodos tanto no Oriente como no Ocidente cristão, mostrando como era importante guardar a unidade do Povo de Deus e o anúncio fiel do Evangelho. O Ano Jubilar poderá ser uma importante oportunidade para tornar concreto este modo sinodal, que hoje a comunidade cristã sente como expressão cada vez mais necessária para melhor corresponder à urgência da evangelização: todos os batizados, cada qual com o próprio carisma e ministério, se sintam corresponsáveis pela mesma a fim de que muitos sinais de esperança deem testemunho da presença de Deus no mundo.
O Concílio de Niceia teve a missão de preservar a unidade, então seriamente ameaçada pela negação da plena divindade de Jesus Cristo e da sua igualdade com o Pai. Estiveram presentes cerca de trezentos Bispos que, convocados sob impulso do imperador Constantino em 20 de maio de 325, se reuniram no palácio imperial. Depois de vários debates, todos, com a graça do Espírito, se reconheceram no Símbolo de fé que ainda hoje professamos na Celebração Eucarística dominical. Os Padres conciliares quiseram iniciar aquele Símbolo empregando pela primeira vez a expressão «Nós cremos», [10] testemunhando que, naquele «Nós», todas as Igrejas se encontravam em comunhão e todos os cristãos professavam a mesma fé.
O Concílio de Niceia é um marco miliário na história da Igreja. O aniversário da sua realização convida os cristãos a unirem-se no louvor e agradecimento à Santíssima Trindade e, em particular, a Jesus Cristo, o Filho de Deus, «consubstancial ao Pai», [11] que nos revelou este mistério de amor. Mas Niceia constitui também um convite a todas as Igrejas e Comunidades eclesiais para avançarem rumo à unidade visível, não se cansando de procurar formas apropriadas para corresponder plenamente à oração de Jesus: «Que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti; para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste» ( Jo 17, 21).
No Concílio de Niceia, tratou-se também da data da Páscoa. A este respeito, ainda hoje existem posições diferentes, que impedem de celebrar, no mesmo dia, o evento fundante da fé. Por uma circunstância providencial, isso acontecerá precisamente no ano de 2025. Seja isto um apelo a todos os cristãos do Oriente e do Ocidente para darem resolutamente um passo rumo à unidade em torno duma data comum para a Páscoa. Vale a pena recordar que muitos desconhecem as diatribes do passado e não entendem como possam subsistir divisões a tal propósito.
Ancorados na esperança
18. A esperança forma, juntamente com a fé e a caridade, o tríptico das «virtudes teologais», que exprimem a essência da vida cristã (cf. 1 Cor 13, 13; 1 Ts 1, 3). No dinamismo indivisível das três, a esperança é a virtude que imprime, por assim dizer, a orientação, indicando a direção e a finalidade da existência crente. Por isso, o apóstolo Paulo convida-nos a ser «alegres na esperança, pacientes na tribulação, perseverantes na oração» (Rm 12, 12). Assim deve ser; precisamos de transbordar de esperança (cf. Rm 15, 13) para testemunhar de modo credível e atraente a fé e o amor que trazemos no coração; para que a fé seja jubilosa, a caridade entusiasta; para que cada um seja capaz de oferecer ao menos um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera, um serviço gratuito, sabendo que, no Espírito de Jesus, isso pode tornar-se uma semente fecunda de esperança para quem o recebe. Mas qual é o fundamento da nossa esperança? Para o compreender, é bom deter-nos nas razões da nossa esperança (cf. 1 Ped 3, 15).
19. «Creio na vida eterna»: [12] assim professa a nossa fé, e a esperança cristã encontra nestas palavras um ponto fundamental de apoio. De facto, «é a virtude teologal pela qual desejamos (…) a vida eterna como nossa felicidade». [13] O Concílio Ecuménico Vaticano II afirma: «Se faltam o fundamento divino e a esperança da vida eterna, a dignidade humana é gravemente lesada, como tantas vezes se verifica nos nossos dias, e os enigmas da vida e da morte, do pecado e da dor ficam sem solução, o que frequentemente leva os homens ao desespero». [14] Enquanto, em virtude da esperança na qual fomos salvos, vendo passar o tempo, temos a certeza que a história da humanidade e a de cada um de nós não correm para uma meta sem saída nem para um abismo escuro, mas estão orientadas para o encontro com o Senhor da glória. Por isso vivemos na expetativa do seu regresso e na esperança de vivermos n'Ele para sempre: é com este espírito que fazemos nossa aquela comovente invocação dos primeiros cristãos com que termina a Sagrada Escritura: «Vem, Senhor Jesus!» ( Ap 22, 20).
20. Jesus morto e ressuscitado é o coração da nossa fé. São Paulo, ao enunciar este conteúdo em poucas palavras (usa só quatro verbos), transmite-nos o «núcleo» da nossa esperança. «Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi: Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois aos Doze» ( 1 Cor 15, 3-5). Cristo morreu, foi sepultado, ressuscitou, apareceu. Por nós, passou através do drama da morte. O amor do Pai ressuscitou-O na força do Espírito, fazendo da sua humanidade as primícias da eternidade para a nossa salvação. A esperança cristã consiste precisamente nisto: face à morte onde tudo parece acabar, através de Cristo e da sua graça que nos foi comunicadano Batismo, recebe-se a certeza de que «a vida não acaba, apenas se transforma», [15] para sempre. Com efeito, sepultados juntamente com Cristo no Batismo, recebemos n'Ele, ressuscitado, o dom duma vida nova, que derruba o muro da morte, fazendo dela uma passagem para a eternidade.
E se diante da morte, dolorosa separação que nos obriga a deixar os nossos entes queridos, não é possível qualquer retórica, o Jubileu oferecer-nos-á a oportunidade de descobrir, com imensa gratidão, o dom daquela vida nova recebida no Batismo, capaz de transfigurar o seu drama. É significativo repensar, no contexto jubilar, como este mistério foi compreendido desde os primeiros séculos da fé. Durante muito tempo, por exemplo, os cristãos construíram a pia batismal em forma octogonal, e ainda hoje podemos admirar muitos batistérios antigos que mantêm esta forma, como em São João de Latrão na cidade de Roma. Indica que, na fonte batismal, se inaugura o oitavo dia, isto é o da ressurreição, o dia que ultrapassa o ritmo habitual, marcado pela cadência semanal, abrindo assim o ciclo do tempo à dimensão da eternidade, à vida que dura para sempre: esta é a meta para a qual tendemos na nossa peregrinação terrena (cf. Rm 6, 22).
O testemunho mais convincente desta esperança é-nos oferecido pelos mártires que, firmes na fé em Cristo ressuscitado, foram capazes de renunciar à própria vida da terra para não trair o seu Senhor. Temo-los em todas as épocas e são numerosos – e talvez mais do que nunca nos nossos dias – como confessores da vida que não tem fim. Precisamos de conservar o seu testemunho para tornar fecunda a nossa esperança.
Estes mártires, pertencentes às diferentes tradições cristãs, são também sementes de unidade, porque exprimem o ecumenismo do sangue. Durante o Jubileu desejo ardentemente que não falte uma celebração ecuménica para evidenciar a riqueza do testemunho destes Mártires.
21. Então, que será de nós depois da morte? Com Jesus, além deste limiar, há a vida eterna, que consiste na plena comunhão com Deus, na contemplação e participação do seu amor infinito. Tudo o que agora vivemos na esperança, vê-lo-emos então na realidade. A propósito, escreveu Santo Agostinho: «Quando me unir a Vós com todo o meu ser, não existirá para mim em lado algum dor e tristeza. A minha vida será uma vida verdadeira, totalmente cheia de Vós». [16] Então, o que caraterizará tal plenitude de comunhão? O ser feliz. A felicidade é a vocação do ser humano, uma meta que diz respeito a todos.
Mas, o que é a felicidade? Que felicidade esperamos e desejamos? Não uma alegria passageira, uma satisfação efémera que, uma vez alcançada, volta sempre a pedir mais, numa espiral de avidez em que o espírito humano nunca se encontra saciado, antes sente-se cada vez mais vazio. Precisamos duma felicidade que se cumpra definitivamente naquilo que nos realiza, ou seja, no amor, para se poder dizer já agora: sou amado, logo existo; e existirei para sempre no Amor que não desilude e do qual nada e ninguém me poderá separar. Recordemos ainda as palavras do Apóstolo: «Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Senhor nosso» (Rm 8, 38-39).
22. Outra realidade ligada à vida eterna é o juízo de Deus, quer no termo da nossa existência quer no fim dos tempos. Muitas vezes a arte tentou representá-lo – pensemos na obra-prima de Michelangelo, na Capela Sistina –, atendo-se à conceção teológica da época e transmitindo um sentimento de temor a quem o observa. Se é justo preparar-se com viva consciência e seriedade para o momento que recapitula a existência, ao mesmo tempo é necessário fazê-lo sempre na dimensão da esperança, virtude teologal que sustenta a vida e nos permite não cair no medo. O juízo de Deus, que é amor (cf. 1 Jo 4, 8.16), só poderá basear-se no amor, especialmente naquele que tivermos, ou não, praticado para com os mais necessitados, nos quais Cristo, o próprio Juiz, está presente (cf. Mt 25, 31-46). Trata-se, portanto, dum juízo diferente do juízo dos homens e dos tribunais terrenos; deve ser entendido como uma relação de verdade com Deus-amor e consigo mesmo dentro do mistério insondável da misericórdia divina. A Sagrada Escritura afirma a este respeito: «Tu ensinaste o teu povo que o justo deve ser amigo dos homens, e deste a teus filhos uma boa esperança, porque, após o pecado, dás a conversão (…), para que, ao sermos julgados, esperemos misericórdia» ( Sab 12, 19.22). Como escreveu Bento XVI, «no momento do Juízo, experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós. A dor do amor torna-se a nossa salvação e a nossa alegria». [17]
Por conseguinte, o juízo diz respeito à salvação na qual esperamos e que Jesus nos obteve com a sua morte e ressurreição. Visa abrir ao encontro definitivo com Ele. E, como em tal contexto não se pode pensar que o mal cometido permaneça oculto, o mesmo precisa de ser purificado, para nos permitir a passagem definitiva ao amor de Deus. Compreende-se, neste sentido, a necessidade de rezar por aqueles que concluíram o caminho terreno: uma solidariedade na intercessão orante que encontra a sua eficácia na comunhão dos santos, no vínculo comum que nos une em Cristo, primogénito da criação. Assim, a Indulgência Jubilar, em virtude da oração, destina-se de modo particular a todos aqueles que nos precederam, para que obtenham plena misericórdia.
23. De facto, a indulgência permite-nos descobrir como é ilimitada a misericórdia de Deus. Não é por acaso que, na antiguidade, o termo «misericórdia» era cambiável com o de «indulgência», precisamente porque pretende exprimir a plenitude do perdão de Deus que não conhece limites.
O sacramento da Penitência assegura-nos que Deus apaga os nossos pecados. Vêm à mente, com toda a sua carga de consolação, estas palavras do Salmo: «É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura. (…) O Senhor é misericordioso e compassivo, é paciente e cheio de amor. (…) Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. Como é grande a distância dos céus à terra, assim são grandes os seus favores para os que O temem. Como o Oriente está afastado do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados» (Sal 103, 3-4.8.10-12). A Reconciliação sacramental não é apenas uma estupenda oportunidade espiritual, mas representa um passo decisivo, essencial e indispensável no caminho de fé de cada um. Ali permitimos ao Senhor que destrua os nossos pecados, sare o nosso coração, nos levante e abrace, nos faça conhecer o seu rosto terno e compassivo. Na verdade, não há modo melhor de conhecer a Deus do que deixar-se reconciliar por Ele (cf. 2 Cor 5, 20), saboreando o seu perdão. Por isso, não renunciemos à Confissão, mas descubramos a beleza do Sacramento da cura e da alegria, a beleza do perdão dos pecados.
Todavia o pecado, como sabemos por experiência pessoal, «deixa a sua marca», traz consigo consequências: não só exteriores, como consequências do mal cometido, mas também interiores, pois «todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório». [18] Assim, na nossa débil humanidade atraída pelo mal, permanecem «efeitos residuais do pecado». São tirados pela indulgência, sempre por graça de Cristo, o Qual, como escreveu São Paulo VI, é «a nossa "indulgência"». [19] A Penitenciaria Apostólica providenciará à emanação das disposições necessárias para poder obter e tornar efetiva a prática da Indulgência Jubilar.
Uma tal experiência repleta de perdão não pode deixar de abrir o coração e a mente para perdoar. Perdoar não muda o passado, não pode modificar o que já aconteceu; no entanto, o perdão pode-nos permitir mudar o futuro e viver de forma diferente, sem rancor, ódio e vingança. O futuro iluminado pelo perdão permite ler o passado com olhos diversos, mais serenos, mesmo que ainda banhados de lágrimas.
No passado Jubileu extraordinário, instituí os Missionários da Misericórdia, que continuam a desempenhar uma missão importante. Que eles exerçam o seu ministério também durante o próximo Jubileu, restituindo esperança e perdoando todas as vezes que um pecador se dirija a eles de coração aberto e espírito arrependido. Continuem a ser instrumentos de reconciliação, e ajudem a olhar para o futuro com a esperança do coração que provém da misericórdia do Pai. Espero que os Bispos possam valer-se do seu precioso serviço, sobretudo enviando-os onde a esperança está posta a dura prova, como nas prisões, nos hospitais e nos lugares onde a dignidade da pessoa é espezinhada, nas situações mais desfavorecidas e nos contextos de maior degradação, para que ninguém fique privado da possibilidade de receber o perdão e a consolação de Deus.
24. A esperança encontra, na Mãe de Deus, a sua testemunha mais elevada. N'Ela vemos como a esperança não seja um efémero otimismo, mas dom de graça no realismo da vida. Como todas as mães, cada vez que olhava para o Filho pensava no seu futuro, e certamente no coração trazia gravadas aquelas palavras que Simeão Lhe dirigira no templo: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma» (Lc 2, 34-35). E aos pés da cruz, enquanto via Jesus inocente sofrer e morrer, embora atravessada por terrível angústia, repetia o seu «sim», sem perder a esperança e a confiança no Senhor. Desta forma, cooperava em nosso favor no cumprimento do que dissera seu Filho ao anunciar que Ele teria de «sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias» (Mc 8, 31), e no parto daquela dor oferecida por amor tornava-Se nossa Mãe, Mãe da esperança. Não é por acaso que a piedade popular continua a invocar a Virgem Santa como Stella Maris, um título expressivo da esperança segura de que, nas tempestuosas vicissitudes da vida, a Mãe de Deus vem em nosso auxílio, apoia-nos e convida-nos a ter fé e a continuar a esperar.
A propósito, apraz-me recordar que o Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, está a preparar-se para celebrar, em 2031, os 500 anos da primeira aparição da Virgem. Através do jovem Juan Diego, a Mãe de Deus fazia-nos chegar uma revolucionária mensagem de esperança que, ainda hoje, repete a todos os peregrinos e fiéis: «Porventura não estou aqui Eu, que sou tua Mãe?» [20] Uma mensagem semelhante é impressa nos corações, em tantos Santuários Marianos espalhados pelo mundo, metas de inúmeros peregrinos que confiam à Mãe de Deus preocupações, sofrimentos e anseios. Neste Ano Jubilar, que os Santuários sejam lugares sagrados de acolhimento e espaços privilegiados para gerar esperança. Aos peregrinos que vierem a Roma, convido-os a fazerem uma paragem orante nos Santuários Marianos da cidade a fim de venerar a Virgem Maria e invocar a sua proteção. Estou confiante de que todos, especialmente aqueles que sofrem e estão atribulados, poderão experimentar a proximidade da mais afetuosa das mães, que nunca abandona os seus filhos; Ela que é, para o santo Povo de Deus, «sinal de esperança segura e de consolação». [21]
25. No caminho rumo ao Jubileu, voltemos à Sagrada Escritura e sintamos, dirigidas a nós, estas palavras: «Nós que procuramos refúgio n'Ele, encontramos grande estímulo agarrando-nos à esperança proposta. Nessa esperança, temos como que uma âncora segura e firme da alma, que penetra até ao interior do véu, onde Jesus entrou como nosso precursor» (Heb 6, 18-20). É um forte convite a nunca perder a esperança que nos foi dada, a mantê-la firme, encontrando refúgio em Deus.
A imagem da âncora é sugestiva para compreender a estabilidade e a segurança que possuímos no meio das águas agitadas da vida, se nos confiarmos ao Senhor Jesus. As tempestades nunca poderão prevalecer, porque estamos ancorados na esperança da graça, capaz de nos fazer viver em Cristo, superando o pecado, o medo e a morte. Esta esperança, muito maior do que as satisfações quotidianas e as melhorias nas condições de vida, transporta-nos para além das provações e exorta-nos a caminhar sem perder de vista a grandeza da meta a que somos chamados: o Céu.
Portanto, o próximo Jubileu há de ser um Ano Santo caraterizado pela esperança que não conhece ocaso, a esperança em Deus. Que nos ajude também a reencontrar a confiança necessária, tanto na Igreja como na sociedade, no relacionamento interpessoal, nas relações internacionais, na promoção da dignidade de cada pessoa e no respeito pela criação. Que o testemunho crente seja fermento de esperança genuína no mundo, anúncio de novos céus e nova terra (cf. 2 Ped 3, 13), onde habite a justiça e a harmonia entre os povos, visando a realização da promessa do Senhor.
Deixemo-nos, desde já, atrair pela esperança, consentindo-lhe que, por nosso intermédio, se torne contagiosa para quantos a desejam. Possa a nossa vida dizer-lhes: «Confia no Senhor! Sê forte e corajoso, e confia no Senhor» (Sal 27, 14). Que a força da esperança encha o nosso presente, aguardando com confiança o regresso do Senhor Jesus Cristo, a Quem é devido o louvor e a glória agora e nos séculos futuros.
Dado em Roma, junto de São João de Latrão, na Solenidade da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, 9 de maio do ano 2024, décimo segundo de Pontificado.
FRANCISCO
[1] Discursos, 198 augm., 2.
[2] Cf. Fonti Francescane, n. 263, 6.10.
[3] Cf. Misericordiae Vultus, Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, nn. 1-3.
[4] Const. past. Gaudium et spes, n. 4.
[5] Francisco, Carta enc. Laudato si', n. 50.
[6] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2267.
[7] Carta enc. Laudato si', n. 49.
[8] Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, n. 262.
[9] Carta enc. Laudato si', n. 51.
[10] Símbolo Niceno: H. Denzinger – A. Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, n. 125.
[11] Ibidem.
[12] Símbolo dos Apóstolos: H. Denzinger – A. Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum definitionum et declarationum de rebus fidei et morum, n. 30.
[13] Catecismo da Igreja Católica, n. 1817.
[14] Const. past. Gaudium et spes, n. 21.
[15] Missal Romano, Prefácio dos defuntos I.
[16] Confissões, X, 28.
[17] Carta enc. Spe salvi, n. 47.
[18] Catecismo da Igreja Católica, 1472.
[19] Carta ap. Apostolorum limina, 23.05.1974, II.
[20] Nican Mopohua, n. 119.
[21] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 68.